Para muitas religiões, comida é uma bênção divina. Algumas proíbem certas comidas, enquanto permitem outras. O Judaísmo e o Islamismo, por exemplo, concordam que carne de porco é ‘suja’ e não pode ser ingerida. Os Hindus consideram as vacas animais sagrados, enquanto Católicos não podem comer carne vermelha durante a Quaresma. Refeições e jejuns marcam rituais comemorativos, e mesmo que a conexão entre religião e comida varie de religião para religião, em uma coisa todas concordam: comida é importante e tem significado.
Tudo no acarajé e nas baianas está repleto de simbolismo religioso, do preparo da receita às roupas das cozinheiras. Vendido em todas as esquinas de Salvador, o quitute é a comida de um orixá. O Candomblé não existiria sem a comida, pois o alimento é elemento de comunicação entre humanos e deuses quando é ofertado como oferenda ao orixá. Quando preparado para Iansã, na forma de oferenda mesmo, o quitute é sempre frito e sem complementos. Essa ligação entre os mundos material e espiritual deve seguir tradições ancestrais, principalmente na preparação dos alimentos.
“É uma oferenda para Iansã, no terreiro de candomblé. A hóstia está para a igreja católica assim como o acarajé e o abará estão para as religiões de matriz africana. Todos têm a mesma importância” segundo Rita Santos, coordenadora da Associação Nacional das Baianas de Acarajé (ABAM).
Observar o ritual de montagem dessa iguaria e apreciar a roupa cheia de detalhes das baianas do acarajé faz parte de uma experiência histórica, cultural, gastronômica e religiosa que levou à inclusão desse ofício na lista dos patrimônios culturais imateriais brasileiros, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Mesmo assim, muitos que vivenciam a preparação do acarajé não têm a mínima ideia de sua ligação extremamente forte com o Candomblé, religião afro-brasileira baseada em cultos religiosos trazidos para o Brasil pelos africanos escravizados, e adaptados até dar origem à religião hoje presente.
O acarajé é um bolinho de feijão fradinho frito em azeite de dendê, recheado com camarão, vatapá, caruru. E dono de um sabor único. Comum na região ocidental da África, o prato tem um nome em cada pedaço do continente. É kosai no norte da Nigéria; koose em Gana e akara em outros lugares, embora em nenhum deles seja exatamente igual. Segundo pesquisadores, o acarajé é um parente distante do falafel dos árabes.
A incrível história do Acarajé
Há pelo menos três séculos as baianas do acarajé trabalham em suas receitas, que foram trazidas da África durante o período colonial. Foram chamadas de escravas de ganho, cuja função era sair para as ruas trabalhando para as patroas, vendendo mercadorias em tabuleiros. Elas vendiam de tudo, desde mingaus a peixes fritos, de acarajés a bolos e quitutes como a cocada.
Embora tivessem que repassar uma grande parte do lucro para suas proprietárias, as escravas de ganho podiam ficar com um pouco do que recebiam. Foi assim que muitas delas conseguiram o sustento necessário para suas famílias - e houve até casos de mulheres que conseguiram comprar sua própria liberdade. Não à toa que a Rita Santos diz que a baiana do acarajé foi primeira mulher empreendedora do Brasil. Com o lucro do tabuleiro das baianas que veio também o dinheiro para criar as irmandades religiosas e financiar os terreiros de Candomblé, mais um argumento para a importância religiosa do acarajé.
Para as religiões de matriz africana, Iansã - deusa dos ventos e das tempestades - buscou Ifá (um oráculo) para fazer um alimento para seu marido, Xangô - o orixá da justiça, dos raios, do trovão e do fogo. A orientação do oráculo foi que, após comer, Xangô deveria falar para seu povo. Quando ele fez isso, labaredas de fogo começaram a sair de sua boca, o mesmo acontecendo com Iansã.
No acarajé preparado para Iansã, na forma de oferenda mesmo, o acarajé é sempre frito e sem complementos. O ofício das baianas continuou após o fim da escravidão e entrou de uma vez por todas no imaginário popular ao longo do século 20. Em 1939, Dorival Caymmi e Carmen Miranda perguntaram o que é que a baiana tem? Enquanto Ari Barroso lembrou que “no tabuleiro da baiana tem vatapá, caruru, mungunzá e umbu”.
Já no século 21, o ofício das baianas do acarajé foi inscrito como patrimônio imaterial da Bahia e patrimônio cultural brasileiro. Há quem defenda que o acarajé seja declarado patrimônio mundial imaterial da humanidade, numa petição que seria feita em conjunto por Brasil e Nigéria, onde uma versão do prato é café da manhã de muitos. Nesse meio tempo, apenas uma coisa não mudou - o prato continua ligado à fé, mesmo que não seja mais exclusividade das baianas do acarajé.
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